Portugal e
Espanha têm uma ligação de vários séculos e a diversos níveis. Política,
cultural e desportivamente, os dois países partilham fronteiras e amizades que
se perpetuam no tempo. No ciclismo não é diferente e a ligação é feita de
momentos únicos e inolvidáveis, como a vitória de “o primeiro campeão” em Lisboa. Falamos desse singular ciclista
espanhol, Mariano Cañardo, que em 1939 venceu a primeira e única edição da corrida
por etapas Madrid-Lisboa.
Mariano Cañardo e Joaquim Manique, 1º e 4º na Madrid-Lisboa (foto Livro "UVP-FPC Cem Anos de Ciclismo") |
Conhecemos
Mariano Cañardo através das palavras de Iván Vega García. No seu livro,
intitulado “El primer campeón, El mundo
que vio Mariano Cañardo” [editora Cultura Ciclista], Iván guia-nos numa viagem
pela vida de um homem que se fez ciclista a duros golpes de pedal, contextualizando-o
política e culturalmente na Espanha e no Mundo de então. É impossível não nos
apaixonarmos pela história de vida deste navarro de nascimento e catalão de
adopção, que teve o seu primeiro contacto com a bicicleta aos 18 anos de idade.
Ao longo de
16 anos, Mariano Cañardo fez do seu talento nato e das inúmeras adversidades
vividas nas corridas a sua mais completa aprendizagem para se tornar num ícone
do ciclismo espanhol e o primeiro ciclista profissional a tempo inteiro que
Espanha deu ao mundo. Através da abnegação com que se entregou ao ciclismo e
viveu cada corrida, apaixonou todos aqueles que seguiam as suas pedaladas em
Espanha e no Mundo. Em Portugal não foi diferente, sendo recebido entre
aplausos e o calor humano de todos quantos esperavam a chegada dos heróis que
terminavam a dura batalha Madrid-Lisboa.
Organizada
pelo jornal “Informaciones” e a União
Velocipédica Portuguesa (UVP), a corrida que uniu Madrid a Lisboa correu-se no longínquo
ano de 1939, na Espanha de Franco e no Portugal de Salazar. Exactamente nesse
ano, Mariano Cañardo regressava à sua querida Barcelona, após três anos vividos
em Amélie-Le-Bains, em França, durante a Guerra Civil Espanhola, que
desertificou o país de competições velocipédicas e não só.
Comitiva portuguesa da Madrid-Lisboa, documento da revista "Stadium" (foto Livro "UVP-FPC Cem Anos de Ciclismo") |
Segundo
informação recolhida na Federação Portuguesa de Ciclismo, a prova viveu-se ao
longo de cinco etapas começando em Madrid e passando por Talavera de la Reina,
Cáceres, Mérida, Badajoz, Tomar até ao epílogo em Lisboa. Os triunfos das
etapas dividiram-se entre portugueses e espanhóis, conquistando Ildefonso
Rodrigues a primeira jornada, Antonio Escuriet a segunda, José Maria Nicolau os
dois sectores da terceira etapa, Mariano Cañardo a quarta e João Lourenço a
quinta jornada.
A equipa
espanhola veio com um poderio de nomes sonantes. Ao lado de Cañardo alinharam
Antonio Escuriet, Delio Rodríguez, Diego Cháfer, Joaquim Olmos, Antonio Andrés Sancho,
Fermín Trueba, Vallero e Herboso. Com esta equipa conquistaram a ‘Taça
Generalíssimo’ no final de 269h50m33s de competição. Também presente esteve
Federico Ezquerra, com quem Cañardo viveu muitas batalhas na estrada.
O campeão
espanhol foi recebido em Lisboa como se de um português se tratasse, certamente
afamado pelo palmarés que foi construindo ao longo da sua brilhante carreira, não
só pelas vitórias em Espanha como os lugares de destaque obtidos em importantes
provas internacionais, como o 9º e o 6º lugares alcançados no Tour de France de
1934 e 1936.
Dias depois
de preencher o seu palmarés com a vitória da Madrid-Lisboa, seria celebrado o festival
de pista no Lumiar, no qual Mariano Cañardo não pôde estar presente, pois impunha-se
correr uma vez mais a corrida do seu coração, a Volta a Catalunya. Na altura,
Cañardo declarou ao jornalista de “La
Vanguardia” sobre a vontade de vencer a sua Volta: “Já podem imaginar que farei todo o possível para revalidar ante os
meus conterrâneos as afortunadas participações que tive no Norte e em Lisboa,
especialmente em Portugal, onde tanto a mim como aos meus compatriotas nos
deram as mais delicadas atenções.” O objectivo cumpriu-se, ganhando a sua
7ª Volta a Catalunya, um feito nunca alcançado por outro ciclista.
A história de
vida de Mariano, como Iván Vega lhe chama ao longo do seu livro, dando um tom
mais íntimo e carinhoso ao relato, apaixona pela sua forma de superar todas as
adversidades da vida pessoal e profissional. Mariano passou pelas duas Guerras
Mundiais e viu Espanha passar pela monarquia, golpe de estado, ditadura de
Primo de Rivera, abdicação de Afonso XIII, segunda República, Guerra Civil e
chegada de Franco ao poder. Nasceu a 5 de Fevereiro de 1906, em Olite (Navarra),
onde viveu seis anos até se mudar para Jaca (Huesca) e posteriormente para
Barcelona em 1919, já órfão de pai e mãe.
O primeiro
contacto com a bicicleta surgiu aos 18 anos, através de Esteban Tort com quem
aprendeu a andar. A partir desse momento, tudo se desenrolou com a naturalidade
de uma história de amor entre Mariano e o ciclismo. Enquanto permanecia no seu
ofício de carpinteiro, começou a sair em bicicleta pelas ruas de Barcelona, que
como Iván descreve era a “Capital da
bicicleta pelos seus inúmeros negócios ligados a ela. (…) Mariano bebia
diariamente aquele entusiasmo. Enquanto praticava na propriedade dos seus
amigos, não parava de receber notícias e vibrações daquele mundo” da
bicicleta.
O gosto e
aptidão foram crescendo e tomando forma no corpo e na alma de Mariano, que em 1924
decidiu comprar a sua primeira bicicleta, 275 pesetas pagas a 5 pesetas
semanais. No ano seguinte, estreou-se a 19 de Março de 1925 na Copa Papis, organizada
pelo Sport Ciclista Català em honra aos pais, sendo 13º entre os 30 corredores
que terminaram a jornada. A partir daí, já não havia volta a dar. Como Iván Vega escreve, “As encostas pareciam falsos
planos, as descidas eram trampolins rumo aos seus sonhos… Mariano tinha empreendido
uma viagem só de ida. Destino? Ser ciclista.”
A admiração pelo
mundo do ciclismo e tudo o que o rodeava foi crescendo em Mariano, tendo em Jaume
Janer um ídolo a quem viu ganhar o Campeonato de Espanha. Na primeira corrida
com os grandes, o GP de la UVE em Barcelona, Mariano finalizou em 5º na vitória
precisamente de Janer. Mas foi em 1926 que começou a escalar os degraus que o
levariam ao sucesso. Na sua primeira Volta a Catalunya alcançou o 3º lugar do
pódio e desde aí foi somando a partir de 1928 as sete vitórias alcançadas na
corrida à qual mais se entregou [1928, 1929, 1930, 1932, 1935, 1936 e 1939].
Com as
histórias de Jaume Janer e Muç Miquel bebeu ensinamentos preciosos para as
batalhas que travou na estrada. No livro de Henri Desgrange, “Le tête et les jambés” encontrou a
frase que o iria inspirar ao longo dos anos: “Os grandes corredores fizeram-se a si mesmos, sem necessidade de
conselhos de ninguém. O instinto de luta existe neles e seguem esse instinto.”
Na alienação mental descobriu a força para superar as adversidades em plena
corrida, como as inumeráveis quedas e furos que o afligiram ao longo da sua
carreira.
Em menos de
dois anos, Mariano recebeu da Unión Velocipédica Española (UVE) o cartão de
ciclista de primeira e aos 21 anos era já chefe de pelotão. Ao talento que se
mostrou na estrada uniu o brilhantismo na pista, conquistando também
importantes vitórias como pistard.
Em 1929
casou-se com María Corominas e no ano seguinte nasceu a sua filha Neus. É
precisamente na década de 30 que Mariano experimentou a dureza das provas
internacionais, não só em Itália como em França, disputando o Tour de France primeiramente
na categoria de agregado na equipa do francês Victor Fontan e sendo 7º no
Mundial de 1930 em Liège, ganho pelo italiano Alfredo Binda. Também nesse ano
venceu o Campeonato de Espanha em linha e recebeu a medalha de ouro de mérito
desportivo. Assim se tornou no primeiro ciclista espanhol a viver a tempo
inteiro do ciclismo.
No Tour de 1934
e 1936 terminou nos dez primeiros da geral, dividindo a sua vida entre
Barcelona e a francesa Amélie-Le-Bains, para onde foi morar durante os anos da Guerra Civil Espanhola [Julho/1936-Abril/1939]. A primeira vitória numa
corrida por etapas internacional chegou precisamente nesse período, na primeira
edição da Volta a Marrocos de 1937, repetindo o triunfo em 1938. No ano seguinte
regressou a Espanha, regressando também as competições de ciclismo que tinham
desaparecido do país fruto da guerra. Mariano voltou a brilhar no seu país conquistando o Circuito del Norte, ganhando em seguida a
Madrid-Lisboa e alcançando depois o seu 7º triunfo na Volta a Catalunya.
O ano de 1942
marcou o último como ciclista a tempo inteiro e o penúltimo a tempo parcial,
dedicando-se mais ao negócio têxtil da família de roupa de ciclismo. Contudo, nunca deixou de viver o ciclismo por dentro, mesmo após o adeus
à estrada. De 1951 a 1954 dirigiu a equipa espanhola no Tour de France, entre
1969 e 1974 foi Presidente da Federação Catalã de Ciclismo, trabalhando ainda
na Setmana Catalana, na Volta a Catalunya, na junta directiva da Federação
Espanhola e como técnico em diversas formações.
Aos 81 anos,
em 1987, Mariano Cañardo deixou o mundo do ciclismo mais pobre, falecendo vítima
de uma hemorragia provocada pela ruptura de um aneurisma na aorta abdominal,
durante operação para retirar um tumor no colon. Coincidentemente, esse mesmo
dia ficou marcado na história de Espanha pelo atentado perpetrado pela ETA exactamente
no bairro Sant Andreu em Barcelona, onde morava Mariano. Um carro bomba fez-se
explodir em pleno estacionamento do Hipercor, vitimando 21 pessoas.
Uma vida de
luta ao compasso da bicicleta, vivida entre a história de lutas mundiais, assim
foi a existência de Mariano Cañardo.
"El primer campeón", de Iván Vega García |
Pelo excelente artigo muitos parabéns.
ResponderEliminarMariano Cañardo correu por duas vezes com Eduardo Lopes. Na Copa España, em Julho de 1939, três escassos meses após o término da Guerra Civil, cujo livro que relata a prova e a viagem da delegação portuguesa, da minha autoria, foi recentemente publicado, e na Madrid-Lisboa, em Setembro de 1939. Dois campeões que se cruzaram na história do ainda ciclismo épico, um sprinter e um corredor de fundo, um português e um espanhol. Na primeira prova, Eduardo Lopes classifica-se mesmo melhor que Cañardo, vencendo um sprint e na segunda, apesar do segundo lugar na etapa 3, viria a abandonar, por quebra da máquina. Ainda não concluí a leitura do livro do primeiro grande campeão de Espanha. Um livro que se recomenda, apesar de escrito em castelhano. Este blogue precisa de mais artigos históricos como este.
ResponderEliminarCumprimentos