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Paris-Roubaix, o conto de fadas de Wiggins

Há muitos séculos atrás, conta a lenda que se forjava a espada Excalibur na ilha de Avalon, arma que se tornaria letal nas mãos de King Arthur na defesa do reino da Grã-Bretanha. Séculos volvidos, nas fábricas da Pinarello forjou-se aquela que seria a arma letal de Sir Bradley Wiggins (Team Sky) na defesa da rainha das clássicas, Paris-Roubaix. Na última batalha de King Arthur contra Sir Mordred, a vitória não o impediu de ser ferido mortalmente. Na sua última batalha no WorldTour, na qual “tens de estar disposto a morrer pela causa” [como referiu ao jornal The Guardian], Wiggins viu a vitória ferida de morte. Nem a Dogma K8-S pôde com a força dos seus rivais. 
Wiggins em plena batalha de Roubaix [© PresseSports/B.PAPON]
O conto de fadas, como Wiggins lhe chamou, chegou ao fim sem a vitória do ciclismo romântico se cumprir. A 113ª edição da Paris-Roubaix surpreendeu como a cada ano, fez sofrer ciclistas e adeptos como a cada ano, levou os heróis desde Compiègne – Clairoix a superar cada troço infernal de pavé rumo ao paraíso do Velódromo de Roubaix. Até lá, 253 km de um campo de batalha minado por 27 sectores em pavé, num total de 52,7 km pedalados sobre as apaixonantes e cruéis pedras.

O amor por Roubaix é praticamente unânime no pelotão dos guerreiros. Contudo, este é um amor que pede tudo em troca da glória maior, a pedra erguida no pódio como troféu final. Sonhado por muitos, alcançado por poucos, o amor de Wiggins pelo Inferno do Norte levou-o a uma preparação exaustivamente focada na última corrida ao comando da Sky. Aumentou de peso, ficou mais possante, chegou a dizer que trocaria o triunfo do Tour de France pela conquista da Paris-Roubaix. Com esta clássica cresceu a admirar todos aqueles que enfrentavam esta corrida sem igual, guardando na memória detalhes que se lembra sem ter de recorrer às cassetes VHS por si gravadas de diversas edições.

Com os seus soldados, Wiggins cedo tomou o comando do pelotão, assegurando que não perdia terreno na frente de batalha. Rodeado por Eisel, Fenn, Knees, Puccio, Rowe, Stannard e Thomas, a esquadra Sky deixou escapar 9 homens numa fuga que, mais cedo ou mais tarde, tinha o fim anunciado. Ainda assim, Gregory Rast (TFR), Adam Blythe (OGE), Alexis Gougeard (ALM), Sean De Bie (LTS), Aleksejs Saramotins (IAM), Pierre-Luc Perichon (BSE), Tim Declercq (TSV), Frederik Backaert (WGG) e Ralf Matzka (BOA) pedalaram livremente até ao primeiro sector de pedras (km 98,5), Troisvilles à Inchy, onde chegaram com cerca de 9 minutos de vantagem. Seguiu-se prontamente o segundo sector, Viesly à Quiévy (km 105), onde um dos líderes de uma esquadra rival foi o primeiro a cair no campo de batalha. Sem a presença do máximo favorito Cancellara, a Trek Factory Racing ficava também sem Stijn Devolder por queda.

Sector a sector, chegaram a um dos mais temidos. À sua espera, em todo o seu esplendor impôs-se Trouée d’Arenberg (km 158), dócil este ano sem provocar danos nas aspirações de quem sonhava com a vitória. Mas a aparente tranquilidade quebrou-se com a passagem do pelotão numa passagem de nível (km 162,5), vendo fechar-se a cancela a meio do grupo e alguns corredores desesperados a passar a linha para não perder o comboio, enquanto o verdadeiro comboio se aproximava. Momento crítico ultrapassado, sem danos corporais nem temporais com a corrida a ser momentaneamente neutralizada, o grupo seguiu em busca da ainda existente fuga, com a Sky a sofrer novo susto ao ver cair um dos importantes soldados. Geraint Thomas sentiu o asfalto e, apesar de voltar à bicicleta, não acabaria a prova tal como Puccio.

No comando assumia o ritmo a Etixx-Quick Step, que numa movimentação perfeita fez tremer Wiggins em pleno sector 14, Tilloy à Sars-et-Rosières (km 181,5), perdendo momentaneamente o contacto a par do favorito Alexander Kristoff (KAT). Disposto a morrer pela causa, Wiggins recuperou terreno, como o voltou a fazer vezes sem fim.

Os quilómetros foram passando e, tal como o grupo de favoritos, a fuga foi sendo reduzida até à sua inexistência à falta de 23 km para a meta. Com o desenlace tão perto de ser vivido, a adrenalina foi aumentando à medida dos ataques desferidos, entre outros, por Stijn Vandenbergh (EQS), Peter Sagan (TCS) ou mesmo Wiggins, que somente com o companheiro Luke Rowe a seu lado continuava na perseguição de um final feliz para este derradeiro capítulo da sua história com a Sky.

Chegava então outro temível sector a quatro do fim, Carrefour de l’Arbre (km 236,5), onde Jurgen Roelandts (LTS) aproveitou as 5 estrelas de dureza para um derradeiro golpe de sorte. Infrutífero aos olhos de quem o perseguiu. A vitória parecia destinada a um dos favoritos, por mais que os demais rivais esgrimissem contra o destino.

A 12 km do desenlace, o pódio começou a formar-se perante o ataque do líder da BMC. Greg Van Avermaet foi seguido por Yves Lampaert (EQS), a quem se juntou Zdenek Stybar (EQS) e John Degenkolb (TGA), que sempre esteve presente nas jogadas cruciais da prova. Esta foi a que o levaria até ao sonho concretizado. Diante do Velódromo, sete guerreiros entraram na frente para deslizar uma última volta à pista de Roubaix. Nenhum desses sete era Wiggins.

Degenkolb (TGA), Stybar (EQS), Van Avermaet (BMC), Lars Boom (AST), Martin Elmiger (IAM), Jens Keukeleire (OGE) e Yves Lampaert (EQS) cruzaram a meta por esta ordem. John Degenkolb, entre lágrimas e o sorriso da vitória, confessava: “Não tive medo de falhar e essa foi a chave”. Palavras do segundo alemão a vencer Roubaix, depois de Josef Fischer no longínquo ano de 1896.

Quanto à defesa da rainha das clássicas, Bradley Wiggins escreveu o ponto final no seu conto de fadas com um 18º lugar (+31”). Como descreveu no final de dura batalha ao site da equipa, nada lhe passou pela cabeça ao cruzar a linha. “Estou feliz. Tive uma boa corrida e ser um ciclista de clássicas tem sido como um novo trabalho para mim nestes últimos dois anos. Foi um hobby conduzido pela minha paixão. Antes da corrida estava a tentar arduamente não pensar sobre esta ser a minha última corrida para a Team Sky. Tantos corredores vieram ter comigo a desejar-me sorte e isso foi muito bom. Muitos deles com quem nunca falei e vieram dar-me os parabéns pela minha carreira. É difícil não nos emocionarmos quando isso acontece, mas passeio-o bem. Disse no início, só quero uma corrida limpa e tive-o. Não tive um furo, uma queda. Ultrapassei-a muito bem e fiquei satisfeito por terminar dentro do Top 20.”

Agora Wiggins deixa a Sky com quem viveu momentos inesquecíveis desde 2010, colhendo triunfos inolvidáveis como o Tour de France (2012), Critérium do Dauphiné (2011/12), Paris-Nice (2012), Tour de Romandie (2012), Tour of Britain (2013), Tour of California (2014), Mundiais de Contra-relógio (2014), entre outros. Regressa ao seu primeiro amor, a pista, para tentar sagrar-se campeão olímpico em 2016 no Rio de Janeiro, título que detém em estrada ao vencer em 2012 o contra-relógio em Londres. Na memória fica esta última incursão pela marcante Paris-Roubaix, onde tudo é diferente das demais corridas... Os braços que tremem a cada pedra golpeada pelos pedais, o corpo que sente a vibração de mais de 200 quilómetros superados, o alívio de um sector ultrapassado e a adrenalina de mais um que chega, o barulho ensurdecedor das correntes das bicicletas, das buzinas, dos carros, dos gritos dos adeptos que enchem cada sector de pavé para ver passar os heróis de Roubaix. Por tudo isto Paris-Roubaix é diferente... é dor para uns, alegria para outros, inesquecível para todos.

Top 10 Paris-Roubaix [© Helena Dias]
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(escrito em português de acordo com a antiga ortografia)

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