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Entrevista a Isabel Fernandes: “África leva-nos a colocar em causa as nossas prioridades de Primeiro Mundo”


O ciclismo apareceu na vida profissional de Isabel Fernandes em 1987 para não mais sair. De comissária estagiária em 1989, chegou ao patamar de comissária internacional dez anos depois, realizando diversas funções na modalidade ao longo dos anos, nomeadamente intérprete e relações públicas de equipas, membro da APCP (Associação Portuguesa de Ciclistas Profissionais) e da organização de várias provas como os Campeonatos da Europa e do Mundo, em Lisboa.

Sobejamente conhecida no ciclismo português, também no ciclismo internacional o nome da comissária lusa é uma referência pelo seu profissionalismo e vontade de fazer progredir a modalidade nos mais diversos cantos do mundo. Reflexo disso é o seu “Projecto de Formação do Ciclismo Africano”, que luta anualmente para manter na estrada, enquanto prossegue com o seu papel de Comissária Nacional e Internacional UCI e membro da Comissão de Arbitragem e Ajuizamento Desportivo do Comité Olímpico de Portugal.

Distinguida como ‘Personalidade do Ano 2016’ pela Federação Portuguesa de Ciclismo e condecorada pela Confederação do Desporto de Portugal, Isabel Fernandes concedeu gentilmente uma entrevista ao Cycling & Thoughts, abordando primeiramente o Projecto de Formação do Ciclismo Africano e, posteriormente, a vida profissional enquanto Comissária UCI.

 
Isabel Fernandes com a equipa MTN Qhubeka (Foto: facebook)


PROJECTO DE FORMAÇÃO DO CICLISMO AFRICANO


Está pessoalmente envolvida há seis anos num importante projecto ligado ao ciclismo africano. De que se trata?

"Em 2013, a UCI nomeou-me pela primeira vez para provas em África. A primeira impressão que tive foi a de falta de desenvolvimento, tanto a nível do conhecimento como dos meios. Insisti muito na necessidade de formação, mas a resposta foi sempre: “não temos ninguém com conhecimento para nos formar”. E tinham razão. Nunca me tinha dado conta que, efectivamente, nestes países faltam os meios, mesmo por muita vontade que se possa ter.

"Continuei a insistir, ao nível das Federações Nacionais, na necessidade de formação e um ano depois recebi o primeiro convite da Federação da Eritreia para começar a formar os comissários do país. Foi o primeiro passo, e também o mais importante, o de ter consciência da necessidade de aprender, pois sem este passo não podemos passar aos seguintes.

"A partir daí, vou anualmente à Eritreia dar formação. O exemplo da Eritreia levou-me a elaborar um projecto, que pode ser aplicado a qualquer país de África, tendo em conta as suas necessidades específicas e com um planeamento a curto, médio e longo prazo, e não apenas esporádico."


Qual o objectivo primordial do projecto?

"Este é um ‘master plan’ baseado na minha experiência vivida nas provas em África e no contacto com os agentes de vários países. O objectivo é ajudar no desenvolvimento do ciclismo em África, através da formação dos diferentes agentes: ciclistas, directores, treinadores, staff da equipa, comissários, organizadores de provas, técnicos de escolas de ciclismo, dirigentes federativos, serviços médicos, Forças Policiais, imprensa e condutores da caravana.

"A área de actuação é a nível da formação nacional, para construir as bases. Nem todos os países têm as mesmas necessidades, em alguns deles certas áreas estão mais desenvolvidas do que noutros e os planos gerais são assim adaptados a cada país."


Quais as principais conquistas alcançadas até ao momento?

"Na Eritreia, já formei 24 comissários regionais e 18 comissários nacionais, os quais já pude avaliar na prática em 2017. Formámos também um grupo de 20 pessoas para organizarem as provas, que foram igualmente avaliadas na prática em 2017. Fizemos uma primeira experiência de gincana com 30 crianças, os comissários e os ciclistas profissionais do país, com o intuito de fomentar a criação de Escolas de Ciclismo e, em 2017, acompanhei a Selecção Nacional da Eritreia durante os Campeonatos do Mundo para os formar em relação ao funcionamento de uma equipa.

"No ano passado criei um programa denominado ‘Experience opportunities in Portugal for African commissaires’ e, em conjunto com os Organizadores do GP Beiras e do Troféu Joaquim Agostinho, foram convidados, em 2017 e 2018, os Comissários Nacionais Elite Africanos para tomarem contacto com as provas na Europa, observando as condições das organizações e o trabalho dos comissários."


Tour Eritreia (Foto: Projecto de Isabel Fernandes)


Que necessidades existem actualmente para poder continuar com o projecto em acção?

"Os meios em África são muito limitados e, por isso, são necessários apoios de patrocinadores, que se queiram associar a este projecto de formação e de desenvolvimento de recursos humanos nestes países.

"Como dizia Nelson Mandela, “A educação é a arma mais poderosa que pode ser usada para mudar o mundo”… acredito nisso e penso que a melhor forma de ajudar estas pessoas não é “dar-lhes o peixe, mas sim ensiná-las a pescar”. Partilhar o meu conhecimento e a minha experiência é algo que vai ficar na vida dessas pessoas para sempre e que elas podem utilizar e transmitir aos outros."


O que despoletou a sua ligação ao ciclismo africano?

"Durante 23 anos, apenas conheci a realidade do ciclismo na Europa e pensava que o ciclismo era apenas aquilo que eu conhecia. Estava enganada. Cada Continente é uma realidade diferente e o ciclismo em cada Continente é também diferente. Não existe uma só realidade, existem várias de acordo com as realidades de vida de cada lugar.

"Como alguém me disse logo no início desta aventura, “África: ou se ama ou se odeia, a realidade é dura demais para se ficar indiferente”… e era a verdade e eu amei África!

"África leva-nos a colocar em causa as nossas prioridades de Primeiro Mundo. Leva-nos a desafiar os nossos limites e a superar-nos a cada instante. Leva-nos a encontrar soluções para problemas, que nem sabíamos que existiam, porque aquelas pessoas esperam que tenhamos respostas para tudo.

"África é colocar um sorriso nos lábios e ter o coração a sangrar de impotência perante tanta coisa que nada podemos fazer, mas não podemos destruir a única coisa que aquelas pessoas têm, que é a liberdade de sonhar, pois não?

"África é uma realidade que fere, que desgasta, mas que nos recompensa em cada sorriso que recebemos. Adoro fazer provas em África, é onde sinto que posso dar um contributo para o desenvolvimento do ciclismo e, neste momento, é isso que faz sentido para mim. Mais do que objectivos pessoais, são objectivos colectivos que me interessam alcançar."


(Foto: facebook)


COMISSÁRIA UCI


O que a levou a ingressar no ciclismo e, principalmente, na carreira de comissária?

"Tudo começou em 1987, quando trabalhei como tradutora de equipas estrangeiras no Troféu Joaquim Agostinho. Nessa altura, a única prova portuguesa do calendário internacional. Em 1988, repeti a experiência e gostei tanto que, no final desse ano, decidi fazer o curso de comissária. Fiz o curso junto com a Paula Martins, éramos as únicas mulheres e começámos uma longa aventura."


Quais os maiores desafios do seu trabalho enquanto comissária internacional?

"Ser árbitro de qualquer modalidade leva-nos a ter a responsabilidade das decisões que tomamos terem que ser correctas e justas. Isso implica um trabalho contínuo de preparação e aprendizagem, que se une à bagagem proporcionada pela experiência. Temos ainda que acrescentar a responsabilidade de representarmos uma Federação Internacional e o nosso próprio país.

"Por outro lado, temos o desafio de trabalhar em ambientes que desconhecemos, com pessoas que também não conhecemos e em culturas que nos são estranhas. Aí vem a parte do lidar com o desconhecido, com o imprevisto e a forma como superamos as situações e a nós próprios.

"Ser comissário é uma paixão, que se faz com muito profissionalismo e sem medo de aprender a cada momento com as novas experiências. O nosso ‘campo de jogo’ tem vários quilómetros de distância, com muitos veículos pelo meio e inúmeros factores externos, que podem interferir na corrida. Gerir tudo isso é, sem dúvida, um desafio gigante, não importa em que parte do mundo estejamos."


Qual a corrida que mais a marcou?

"Sem dúvida, foram as provas dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio 2016. Foi uma experiência única, porque os Jogos são diferentes de todas as outras provas e por todas as dificuldades que vivi.

"Foram três anos de trabalho intenso, de muita luta, de muitos passos atrás, de coisas inexplicáveis… mas de uma coisa tenho a certeza, depois desta experiência estou pronta para fazer de tudo em qualquer parte do mundo. E aprendi, muito mesmo. Aprendi principalmente que sou capaz de muitas coisas que nem sabia."

 
Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio 2016 (Foto: facebook)


Qual a corrida em que nunca esteve e gostaria de fazer?

"Os Campeonatos do Mundo de Estrada, em África."


No mundo do ciclismo feito maioritariamente de homens, como é ser-se mulher e ter um papel tão relevante como o de comissária?

"Neste momento, é algo muito normal, mas nem sempre foi assim. No início, as mulheres não eram aceites no ciclismo. Aliás, na altura estava escrito no regulamento que as mulheres não podiam circular na caravana. Foi um processo lento de aceitação e afirmação, mas o facto de os dois primeiros comissários internacionais no nosso país serem mulheres, acho que mostra que esse processo foi bem sucedido.

"Não sinto qualquer diferença de tratamento, até porque não há qualquer diferença. É uma questão de atitude, não costumo pensar nisso."


O que a apaixona na sua profissão?

"O ciclismo é um desporto único, de grande superação. Os ciclistas são super-heróis de carne e osso e merecem-me o maior respeito e admiração. Zelar para que existam condições de segurança e que a verdade desportiva seja garantida são os meus compromissos para com os atletas.

"O ciclismo é mais que uma paixão. No meu caso, foi e é uma opção de vida."


Comissária Isabel Fernandes no Tour do Rio (Foto: Filipe Marques)

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