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O que é feito do ciclismo feminino luso?


Daniela Campos a vencer prova da Taça de Portugal em 2019 (© Helena Dias)

Há pouco mais de um ano, a 5 de Março de 2019, expus nas redes sociais a ideia de se realizar a edição feminina da Volta a Portugal. Dias mais tarde, a comissária UCI Isabel Fernandes, visionária e lutadora neste e noutros temas ligados à modalidade, contactou-me para expormos a ideia à organizadora da Volta a Portugal, a Podium Events. Joaquim Gomes, director da prova, acedeu de imediato a receber-nos e foi de bom grado que ouviu a ideia e se mostrou bastante receptivo à sua realização, ficando o projecto em standby para 2020. Contudo, 2020 ficaria ensombrado pela pandemia, deitando por terra este nobre projecto, bem como a própria realização da 82ª edição da Volta a Portugal pela Podium Events, sendo a prova masculina organizada este ano pela Federação Portuguesa de Ciclismo, com a designação de Volta a Portugal - Edição Especial. De referir também que, para levar a ideia avante da edição feminina da Volta a Portugal, contámos com o apoio incondicional das ciclistas Daniela Reis (Ciclotel), Tata Martins (Drops), a seleccionadora nacional Ana Rita Vigário e a ex-ciclista Isabel Caetano.

Um ano volvido, o que é feito do ciclismo feminino luso? Basicamente, ficou reduzido à prova de contra-relógio dos Campeonatos Nacionais, marcada para o dia 20 de Setembro, na vila alentejana de Castelo de Vide, e a possível realização de uma ou outra prova no Minho. Comparativamente ao panorama internacional, verificamos estar muito abaixo das expectativas criadas, ano após ano, relativamente ao desenvolvimento e aposta no ciclismo feminino em Portugal. O surgimento da pandemia não explica tudo, ela apenas veio destapar os problemas já existentes.

Olhando ao panorama internacional, regressamos ao mês de Julho, aquando do recomeço de provas após confinamento em diversos pontos do globo, e verificamos que apenas Suíça, Suécia, Bermudas, Bélgica, Itália, Sérvia e Áustria limitaram os Nacionais de Estrada femininos à prova de contra-relógio, enquanto os demais países realizaram ambas as provas de fundo e de contra-relógio, nomeadamente a Eslovénia, Croácia, Ucrânia, Bulgária, Roménia, Rússia, Estónia, Lituânia, República Checa, Finlândia, França, Islândia, Países Baixos, Polónia, Eslováquia, Espanha, Tailândia, Dinamarca, Alemanha, Hungria, Luxemburgo, Noruega, Grécia, México e Bielorrússia.

A nossa vizinha Espanha foi pioneira neste regresso à estrada do pelotão feminino, apesar dos números oficiais da propagação do vírus. Emakumeen Nafarroako Klasikoa (1.1), Clasica Femenina Navarra (1.1) e Durango-Durango Emakumeen Saria (1.1) foram as três provas realizadas, tendo como vencedora implacável a campeã do mundo Annemiek van Vleuten, holandesa de 37 anos, que desde 2016 milita na equipa Mitchelton-Scott (ex Orica-AIS e Orica-Scott), sabendo-se já que irá correr as próximas duas épocas na Movistar Team.

Para uma análise mais cuidada e assertiva do estado do ciclismo feminino, solicitei a colaboração do colega espanhol Marcos Marín, responsável de comunicação da equipa continental UCI Bizkaia-Durango:

“Tenho de admitir que em Espanha somos uns afortunados. Na minha opinião, é evidente que o mundo não pode estar paralisado e era necessário que as corridas regressassem. Tivemos a sorte das primeiras corridas femininas se realizarem no País Basco, uma terra em que o ciclismo se vive com maior intensidade do que em qualquer outro lugar.”

“Tinha que se voltar à competição, mas provavelmente as coisas fizeram-se de modo precipitado, com um protocolo de segurança sanitária que a UCI mudou a escassos dois dias da primeira corrida, obrigando muitas equipas a não poder competir por não ter feito o teste PCR (teste vírus SARS-Cov-2). Com esta obrigação, as equipas têm de assumir custos muito elevados, que podem levar, e levam, a que não possam competir em algumas corridas que tinham programado. A UCI não deu condições para que as equipas possam cumprir estes protocolos sem prejuízo económico, acentuando-se o problema nas Continentais femininas, algo que teria que se rever para 2021, porque tudo aponta para que a situação sanitária continue igual. Uma grande redução nas taxas a pagar à UCI seria um avanço importante relativamente à próxima temporada.”

“Problemas à parte, o regresso do ciclismo não decepcionou e responderam favoravelmente os percursos, as ciclistas e, claro, os fãs bascos, que cumpriram todas as medidas de segurança possíveis, enchendo as corridas para apoiar as melhores ciclistas do mundo. Annemiek van Vleuten, provavelmente a melhor ciclista do mundo hoje em dia, ganhou as três corridas no País Basco e o resto já é história.”

Marcos Marín, responsável de comunicação da equipa Bizkaia-Durango (© Rafa Etxebarria)

Voltando à análise sobre os países que trouxeram o pelotão feminino de regresso à estrada, em Agosto foi a vez de França, Itália e Bélgica. A ciclista espanhola Sheyla Gutiérrez (Movistar Team), de 26 anos, venceu a prova francesa La Périgord Ladies (1.2), enquanto a dinamarquesa Cecilie Uttrup Ludwig (FDJ Nouvelle Aquitaine Futuroscope), de 25 anos, venceu o Giro dell’Emilia Internazionale Donne Elite (1.Pro). Os Campeonatos Europeus tiveram lugar em França, com Annemiek van Vleuten a vencer a prova de fundo e Anna van der Breggen, de 30 anos, a vencer a prova de contra-relógio, corredora holandesa ao serviço da Boels-Dolmans desde 2017 e com contrato para 2021 na mesma equipa, que se designará SD Worx, ano que será o seu último como profissional. Nestes Europeus, destaca-se a prestação em Plouay da ciclista lusa Daniela Campos, que conquistou no escalão júnior o 5º lugar na prova de fundo e 9º no contra-relógio. O mês fechou na Bélgica com Lorena Wiebes a conquistar a Grote Prijs Euromat (1.2), ciclista holandesa de 21 anos ao serviço da Team Sunweb desde Junho e com contrato até 2024.

Marcos Marín acompanha as glórias e os infortúnios do pelotão feminino pelo mundo inteiro, tendo uma visão bastante clara do potencial de Portugal. “Vejo as imagens das corridas femininas no País Basco, a paixão com que são vividas, e penso no parecido que podia ser a situação em Portugal. Em ciclismo masculino, Portugal deu grandes estrelas, por isso, é evidente que também podia tê-las no feminino. Existem ciclistas portuguesas realmente boas nas camadas mais jovens, mas são diamantes em bruto. Seria necessária uma estrutura, que não passasse apenas pelo apoio da Federação Portuguesa de Ciclismo, que desse saída internacional aos jovens talentos que há em Portugal.”

“Mais… como sempre, é necessário cuidar a base. Se entre cem ciclistas sai uma de classe mundial, o que há que conseguir é que não haja 100 raparigas a competir, mas sim que haja 1000. Por essa razão é tão importante que elas tenham modelos a seguir. Em Espanha já acontece, as jovens ciclistas vêem em Mavi García, Ane Santesteban, Sheyla Gutiérrez ou Lourdes Oyarbide exemplos em que se querem converter, querem chegar tão longe como elas.”

“Em Portugal, a situação é muito melhor do que há uns anos, contudo é insuficiente. Antes, praticamente só podia ver-se a Daniela Reis a competir em corridas internacionais. Agora, a Tata Martins luta por vitórias em etapas do WorldTour e isso serve provavelmente de inspiração a muitas raparigas lusas. E o que vem das camadas mais jovens também é de um altíssimo nível, temos o exemplo da Daniela Campos, quinta no Campeonato da Europa júnior, que acaba de assinar até 2022 pela Bizkaia-Durango, a minha equipa. A Daniela Campos é apenas um exemplo dessa nova fornada de ciclistas portuguesas, que daqui a uns anos vão dar muito que falar e espero que possamos vê-las nas melhores corridas do calendário.”

Chegados a Setembro, as ciclistas puderam manter-se em competição, nomeadamente na prova francesa por etapas Tour Cycliste Féminin International de l’Ardèche (2.1), que viu a norte-americana Lauren Stephens, de 33 anos, garantir a vitória de duas etapas e da classificação geral para a Team Tibco-SVB, enquanto a espanhola Mavi García (Alé BTC Ljubljana), de 36 anos, conquistou as duas primeiras etapas e liderou a geral até à quinta jornada. Na Turquia já foram realizados quatro grandes prémios: o Grand Prix Develi (1.2) ganho pela colombiana de 19 anos Laura Milena Toconas, o Grand Prix Cappadocia (1.2) ganho pela ucraniana de 30 anos Valeriya Kononenko (Ciclotel), e os Grand Prix Mount Erciyes 2200 mt (1.2) e Grand Prix World’s Best High Altitude (1.2) ganhos pela russa de 21 anos Mariia Novolodskaia (Cogeas-Mettler pro Cycling Team).

No que toca ao calendário WWT – Women’s WorldTour, o mês de Agosto viu Annemiek van Vleuten conquistar a clássica italiana Strade Bianche (1.WWT) e ciclista britânica de 31 anos Elizabeth Deignan (Trek-Segafredo) vencer as provas francesas GP de Plouay (1.WWT) e La Course by Le Tour de France (1.WWT). No horizonte, o pelotão feminino tem já o Giro d’Italia Internazionale Femminile (2.WWT), entre os dias 11 e 19 de Setembro.

A cada ano que passa, é notória a crescente aposta internacional no ciclismo feminino, sendo igualmente fundamental que o mesmo aconteça em Portugal.

Marcos Maríncorrobora esta visão. “Vejo necessário que o ciclismo feminino português continue a crescer, porque penso que, por exemplo, seria muito bonito ver uma Volta a Portugal feminina com as melhores ciclistas do mundo. Uma ‘Grandíssima’ feminina é só uma questão de tempo, por essa paixão com que se vive o ciclismo em Portugal, e daria um novo impulso ao ciclismo português. Um impulso que necessita para se converter numa referência em todo o mundo.”

Assim esperamos que aconteça.


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