Daniela Reis fez história no ciclismo português ao ser a
primeira ciclista lusa a integrar uma equipa feminina WorldTour. Aos 24 anos subiu
ao escalão máximo UCI, vestindo as cores do grupo belga Lares-Waowdeals e
correspondendo de forma exemplar à aposta feita pelo director desportivo Marc
Bracke em 2017, uma aposta que espera renovar na próxima temporada.
Daniela Reis combina ambição e humildade na estrada (© Helena Dias) |
Na entrevista ao jornal O
Jogo, em versão alargada no Cycling
& Thoughts, Daniela Reis é clara ao definir esta nova etapa da sua
jovem carreira: “O WorldTour feminino é
somente o nível mais alto do ciclismo. Em cada prova correm as 20 ou 30
primeiras do Campeonato do Mundo. É sofrer corrida atrás corrida para ir com
elas e fazer o melhor possível.”
O enorme feito de ingressar no mais alto nível do ciclismo
mundial parece ter passado ao lado no próprio país. “Acho que passou um pouco despercebido. Há pessoas que têm noção e
estão por dentro do ciclismo feminino, mas muita gente não faz ideia do que é o
WorldTour feminino. Simplesmente pensam que estava em França e fui para a
Bélgica.”
“Entrar num ciclismo
belga ou holandês é um grande feito para Portugal, porque há uma enorme
quantidade de ciclistas de qualidade nesses países. A nível nacional, elas têm
por vezes três a quatro corridas por semana e uma prova regional chega a ter
150 atletas, comparando com os nossos circuitos com três ou quatro femininas. As
atletas nesses países podem passar logo para equipas UCI. No entanto, vieram
buscar uma portuguesa”, refere Daniela.
Se no WorldTour masculino o ordenado mínimo é assegurado, já
do lado feminino a realidade é completamente diferente. “Sei que temos ali um leque de cerca de 20 atletas a ganhar como os
homens, valores altos, mas há grande discrepância no ciclismo feminino e muitas
não são remuneradas. Tens de fazer para estar lá, dar provas e ter pontos UCI
para ter um bom salário, senão ganhas pouco ou mesmo nada. Quando vim para esta
equipa, o director disse-me que, embora não tivesse pontos UCI, iam pagar-me
250 euros por mês [10 meses por ano] para
as minhas despesas, porque era campeã nacional. Dão valor à camisola e também
por esta razão defender o título é tão importante para mim. As coisas correram
bem e não me vão tirar o ordenado por causa disso.”
Regressando ao início da sua história na modalidade, Daniela
começou no BTT, passou pela Pista e aos 16 anos a Estrada falou mais alto. “Comecei no ACD Milharado, onde estive a
maior parte dos anos de formação. Fiz um ano na Academia Joaquim Agostinho e
depois surgiu a oportunidade de ir para o estrangeiro, para França, onde corri
dois anos [2015/2016] na DN17
Poitou-Charentes, dando o salto este ano para o nível UCI com a Lares-Waowdeals”,
recorda.
Em Portugal, o pelotão feminino
caracteriza-se pela sua escassez no número de atletas e de provas,
uma realidade totalmente diferente encontrada por Daniela nos dois anos
passados em França. Contudo, não foi nas corridas que encontrou a maior
dificuldade no primeiro ano de adaptação.
“De Portugal para
França, o mais difícil nem foram as corridas, mas sim o facto de ir para o
estrangeiro, estar sozinha e não falar a língua”, admite Daniela. “Passei por uma série de experiências que me
fizeram crescer muito, não só como atleta, mas também como pessoa e essa talvez
tenha sido a parte mais difícil. Caí ali de pára-quedas e tive de me desenrascar,
estava por minha conta.”
“Na parte referente ao
ciclismo, as provas em França não são ao nível do WorldTour, mas fiz algumas
corridas UCI. Antes de ir para França, deixei de trabalhar para me aplicar
muito nos treinos e a diferença não ser assim tão grande. É claro que sofria
nas corridas, pois são provas com cento e muitas atletas ao contrário de
Portugal, mas a adaptação nem foi assim tão má. Na segunda ou terceira corrida
comecei a perceber que também tinha capacidade para andar bem com elas e
consegui integrar-me bem naquele pelotão.”
A integração não podia ter sido melhor, conquistando no
segundo ano a Taça de França. “Logo no
primeiro ano em França ganhei uma corrida, fugi e acabei por ganhar isolada.
Nesse ano fiz terceiro na Taça de França sub-23 e quarto na geral. No final
dessa temporada tive oportunidade de ir para outra equipa, mas optei por ficar
mais um ano de consolidação. Quando iniciei esse segundo ano, um dos meus
objectivos era a Taça de França e logo após a segunda corrida ganhei a camisola
de líder, que felizmente consegui manter até ao final.”
Além da Taça de França, Daniela Reis ficou em segundo na
Taça de Portugal 2016, disputando apenas duas das cinco provas pontuáveis,
alcançando a vitória em ambas.
Sair do país para integrar o pelotão internacional nem
sempre é uma escolha fácil. As sucessivas viagens e estar longe dos entes
queridos requer uma força psicológica, por vezes maior do que o talento físico.
Este ano, Portugal viu regressar ao pelotão nacional Fábio Silvestre
(Sporting-Tavira), depois de três anos na Leopard e dois na WorldTour Trek,
sendo o próprio a admitir que não era fácil estar longe de casa.
Actualmente numa equipa WorldTour, Daniela passa um pouco
pelo mesmo. “Em França tinha uma equipa
mais familiar e dávamo-nos bem. Vivia na casa do meu director desportivo e era
como uma segunda família. Aprendi a falar francês e ao fim de um ano já me
desenrascava.”
“Falei algumas vezes
com o Fábio e percebo a parte dele. Penso que ele sentia o que eu senti um
pouco este ano na equipa UCI, onde tenho atletas de todo o lado, principalmente
holandesas e belgas, que tão depressa falam inglês e tu percebes, como passam a
falar a língua delas e nem sequer sabes se estão a falar bem ou mal de ti, não
sabes o que se está ali a passar. Mas aprendi a lidar bem com isso. Depois há
ainda a parte de estar muito tempo sozinha longe da família. Por muito que
estejas na casa da equipa, a realidade é que são teus colegas, não são a tua
família. Não estás sozinha, mas sentes como se estivesses.”
No ano de estreia pela Lares-Waowdeals, com a camisola de
campeã nacional de fundo e de contra-relógio, Daniela Reis pisou os maiores
palcos das Clássicas mundiais: Tour de Flandres, Amstel Gold Race, La Flèche
Wallonne e Liège-Bastogne-Liège.
“Em termos de
ambiente, as clássicas são espectaculares”, diz Daniela com um notório
brilho nos olhos. “Quando me disseram que
ia fazer o Tour de Flandres, nem acreditei. É só uma das maiores corridas. Este
ano fiz quase todas as corridas mais populares e importantes do mundo a nível feminino.
Só o facto de estar à partida com a camisola de campeã nacional é muito
importante. As pessoas não têm noção, mas eles dão muito valor e falam de ti
perante a multidão à volta a acenar e a bater palmas. É um mundo completamente
diferente, em todo o percurso as corridas têm muito mais público.”
“Por muito que eu
saiba que ainda não tenho capacidade para discutir a corrida, dei o meu melhor
em todas e não correu mal para primeiro ano. Só não acabei a Amstel. Queria
mais, pois não consegui fazer nenhum Top 20 nessas corridas, mas como o meu
treinador disse, tenho que ter calma. Quando no ano passado descolava à
partida, este ano já consegui andar com elas quase até aos últimos 20 km. Sei
que tive uma grande evolução nestes últimos anos e hoje em dia encaro as
corridas de forma mais tranquila.”
Para além das Clássicas, Daniela pedalou também as três
grandes voltas, recordando-se que o Tour de France (La Course) e a Vuelta a
España (Madrid Challenge) são provas de um dia no calendário WorldTour
feminino. Já o Giro d’Italia levou as ciclistas a pedalarem dez etapas num
total de mais de 1000 km.
Apesar grande experiência e de querer repetir o Giro,
Daniela atira com um sorriso: “Foi
horrível, nunca sofri tanto! Preparei-me como nunca, fiz estágio na Serra da
Estrela, tive cuidado com a alimentação… Estava bastante magra, mas não perdi
massa muscular, apenas estava mais seca e definida. Fiz tudo o que tinha a
fazer e sofri todos os dias. Ao fim de 5/6 dias, estava completamente estoirada
e elas aguentavam como se tudo fosse terminar aos 10 km, completamente ‘à morte’,
e eu só pensava como é que elas conseguem estar assim e eu estou tão mal? Nos
últimos dias já me senti melhor. Não disse isto na altura, porque podiam dizer
que estava com desculpas, mas no segundo dia comecei a ficar um pouco
constipada e isso deitou-me um pouco abaixo. No contra-relógio por equipas do primeiro
dia apanhámos frio e a partir do segundo dia senti-me um pouco mal. Para o
final já aguentei melhor o ritmo a que elas iam.”
Terminar uma prova por etapas da dureza do Giro em 56º da
geral, entre 130 atletas, é um resultado com grande significado, principalmente
se juntarmos o factor estreia no caso de Daniela.
O sonho de correr ao lado dos grandes nomes mundiais mostrou-se
assim possível e com reais possibilidades de ser também Daniela protagonista
nesse palco. “Anna van der Breggen,
Marianne Vos e Christine Majerus têm uma capacidade psicológica fora do normal.
Há uns anos atrás, pensava que nunca ia chegar ao seu nível delas. Quando fui
correr para fora e comecei a aguentar ao lado elas, comecei a acreditar que
também consigo estar ali, embora mantenha um grande respeito por todas. E
quando venho a passar mal e vejo a campeã do mundo a passar mal também, sinto
que tudo é possível.”
Quando pedimos que se defina enquanto atleta, Daniela brinca
com a situação ao lembrar o sofrimento que passa diante das grandes ciclistas
mundiais. “Costumo dizer que sou uma atleta completa: não ando nada a subir,
não ando nada a descer e não ando nada a rolar.”
Mais a sério, responde: “Se
fosse aqui em Portugal, podia dizer que o meu forte é a subir e no
contra-relógio. Mas lá fora ainda não consigo especificar no que sou boa. Tem
de se atingir um certo nível para conseguir definir quais as características.
Se bem que no ciclismo feminino não está tão definido como nos homens. Nas
corridas há umas que sprintam menos que outras, mas no geral tanto conseguem
ganhar corridas a rolar ou a subir. As melhores são quase sempre as mesmas a fazer
a diferença, independentemente do percurso da corrida.”
Este ano, não pôde defender o título nos Campeonatos
Nacionais, uma situação que lamenta. “Eu
tinha um grande trauma com os campeonatos, porque fiz quase sempre segundo a
perder contra a Celina [Carpinteiro].
Chegávamos as duas e ela ganhava-me ao sprint. Este ano não tive oportunidade
de defender o título e falei sobre isso no meu facebook, porque estava no meu
direito. Foi injusto o que aconteceu. No início do ano, falei com o Presidente
da Federação quando vi o pré-calendário e percebi que os Nacionais coincidiam
com o Giro. Estando no WorldTour, existia uma forte possibilidade de fazer o
Giro e falou-se em antecipar os Nacionais para o fim-de-semana anterior. Mas não
mudaram a data e não pude participar. Custou-me imenso.”
Numa temporada ao mais alto nível e terminando todas as
corridas, à excepção da referida Amstel, não foi convocada para o Mundial em
Bergen, estando a Selecção representada no campo feminino apenas no escalão
júnior com uma atleta. A ausência da maior ciclista lusa da actualidade foi
sentida na prova de elites e Daniela explica: “O meu primeiro mundial foi em Espanha [2014], num percurso que subia bastante e sabiam que não tinha capacidade
para aquela corrida. Esta época corri o ano todo com as grandes atletas e sei que
estaria melhor do que em Ponferrada. A minha forma de encarar as corridas é
diferente, sei que posso fazer alguma coisa. Mas informaram-me que não estava
convocada por razões técnico-desportivas.”
No que toca ao panorama nacional, Daniela reflecte: “O ciclismo feminino nacional está a
regredir, cada vez mais miúdas de valor abandonam a modalidade Depois de eu ter
ido para o estrangeiro, a Federação podia pegar no meu exemplo para tentar
levar o ciclismo feminino um pouco mais longe, apostar e formar um leque de
atletas que possam ir para o estrangeiro. A realidade é que treinas um ano
inteiro para cinco a seis provas em Portugal, tendo de conciliar com estudos e
família. Basicamente, andas a treinar para quase nada e quando vais ao
estrangeiro não consegues andar com elas, que começam a correr em Fevereiro e
acabam em Outubro. Não tens ritmo para aquilo e acaba-se por passar uma imagem
das portuguesas não andarem nada.”
No fundo, as ciclistas que correm em Portugal não conseguem
ter visibilidade para as equipas estrangeiras e quando vão ao estrangeiro pela
Selecção acabam, a maioria das vezes, por matar a oportunidade que podia
surgir. “Penso que podíamos correr mais
vezes lá fora, começando por corridas mais pequenas para ir evoluindo, e devia
haver mais acompanhamento das atletas. Estão a tentar fazer isso com a Maria
Martins e com a Soraia Silva, mas temos outras miúdas com capacidade como a
Marta Branco, havendo ainda mais. Devia começar a promover-se o ciclismo
feminino nas camadas mais jovens, nas escolinhas, para no futuro haver mais
miúdas.”
Questionamos se seria bom ter uma figura com experiência
nacional e internacional na Federação, como a ex-ciclista profissional Isabel
Caetano. “Seria bom. Tivemos Catarina
Canha com boas ideias e projectos, mas numa Federação de homens mais antiquados
cortaram-lhe um pouco as pernas. Em Portugal, o ciclismo é um mundo de homens.
No estrangeiro é cada vez mais de homens e mulheres.”
Daniela Reis demonstra uma elevada ambição a par da
humildade que a caracteriza. Vê-se na estrada e na sua projecção quanto ao
futuro da sua carreira. “Espero continuar
a evoluir e que o próximo ano seja um pouco mais fácil, no sentido de conseguir
ver mais resultados, porque na realidade são os resultados que motivam o
atleta. Podemos saber que estamos melhor fisicamente, mas se não conseguimos
atingir os objectivos, se não conseguimos um Top 20 e depois um Top 10, acaba por
ser um pouco desmotivante. Este ano foi o primeiro e sempre a sofrer, espero
que para o ano seja mais simples, embora com elas não hajam corridas fáceis.”
“Por agora não me vejo
a ganhar uma corrida, mas tenho esse sonho. Sei que ainda não tenho capacidade
para isso e sei qual é o meu papel na equipa, faço o meu trabalho como tenho de
fazer. Não me importo de dar uma roda, andar a puxar ou ir à água. Fazer o meu
trabalho e terminar uma corrida ali com elas, demonstra que estou quase no
ponto de andar sossegadinha no pelotão para discutir a corrida. Não me importo
de fazer o meu trabalho, dá-me muito gosto trabalhar para as minhas colegas à
espera que um dia consiga ter a oportunidade de ser eu a disputar uma corrida”,
conclui.
Nos números contabilizados pelo site ProCyclingStats,
Daniela Reis somou em 2017 um total de 5022,56 km em 49 dias de competição. Ao
mais alto nível do ciclismo feminino disputou 23 corridas internacionais UCI,
das quais 12 de categoria WorldTour.
Daniela Reis protagonizou uma temporada de grande crescimento na Lares-Waowdeals (© Anton Vos) |
Força Daniela Reis...Obrigado Helena Dias ;)
ResponderEliminarManuel Vitorino
A Daniela confirma o k eu jà conhecia, o nivel do ciclismo Belga e Holandês é bastante forte .
ResponderEliminarespero bem a vêr em prova ,entre as maiores numa das clàssicas belgas