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Entrevista a Tiago Machado: “A nossa Volta continua a ser uma das grandes provas do mundo”


Dez anos separaram Tiago Machado da Volta a Portugal. Em 2019, com a equipa Sporting-Tavira, regressou ao pelotão nacional, após nove anos a protagonizar grandes exibições ao mais alto nível no pelotão internacional. Radioshack, NetApp-Endura e Katusha foram as esquadras nas quais se destacou pela qualidade manifestada nas maiores corridas mundiais, desde as três grandes voltas, as famosas clássicas e até as corridas norte-americanas.

Embora não sejam necessárias apresentações, relembramos apenas alguns dos brilhantes resultados obtidos além-fronteiras, não esquecendo as marcantes performances enquanto gregário dos melhores ciclistas internacionais: vitória do Tour de Slovénie, pódio no Santos Tour Down Under, Giro del Trentino, Critérium International, entre tantos outros.

Aos 33 anos, Tiago Machado decidiu regressar ao pelotão do seu país de origem, sendo um dos trunfos da equipa Sporting-Tavira na 81ª edição da Volta a Portugal, a qual terminou em 15º na geral individual. 


Após um ano no escalão Pro Continental e oito anos no WorldTour, como classificas o teu regresso a Portugal?

“Não sei, não há palavras para classificá-lo. Foi um regresso pensado a partir de Junho do ano anterior. Em conversa com a minha família, com a minha mulher, pensámos que estava mais do que na altura de regressar para competir em Portugal. Foram muitos anos fora do país, muitos dias perdidos fora de casa entre estágios, competições e dias antes das provas. Estava saturado e já não dava para continuar àquele nível em que estava e monetariamente estava a chegar a um ponto limite do que tinha estipulado para continuar fora de Portugal.”

Em termos mentais, como é manter-se ao mais alto nível durante nove anos no WorldTour?

“Temos que ter boas bases, ter quem nos apoie e nos dê suporte quando as coisas não correm tão bem, porque nem sempre correu bem. Nem tudo correu bem durante esses anos, houve dias menos bons e, quando assim é, tendo o apoio necessário em casa, as coisas ultrapassam-se com maior facilidade. Desfrutei muito dos nove anos que corri ao mais alto nível, estive nas melhores equipas do mundo e estou muito contente com o que fiz fora de Portugal.”

Nessas equipas correste com grandes nomes do ciclismo. Um deles é incontornável, Lance Armstrong. Uma figura controversa, mas com grandes feitos no ciclismo e na Fundação Livestrong.

“Uma pessoa tem que ver as coisas como elas são. O Lance Armstrong marcou uma geração, foi o vencedor de sete Tours, entre outras coisas também importantes, como sagrar-se campeão do mundo antes da sua batalha contra o cancro. Ultimamente, as pessoas associam o Lance Armstrong àquele escândalo em que admitiu que se dopava, mas ele próprio disse que era o que a geração dele fazia, que ele ganhava em igualdade de circunstâncias com os outros. Fui colega de equipa dele e, quando fui, foi para realizar um sonho, fui para a beira do melhor ciclista da actualidade e de todos os tempos e fiquei muito contente de ter esse privilégio.”

“Nem todos os portugueses podem dizê-lo, acho que apenas eu, o José Azevedo e o Sérgio Paulinho podemos dizer que fomos companheiros de equipa de Lance Armstrong. Das corridas que partilhei com ele, e foram algumas, lembro-me acima de tudo de, quando fiz pódio no Critério Internacional, ele dizer-me que passava a ser eu o líder da equipa, porque ele não ia com as melhores sensações, e no final esperar para autografar a minha camisola da juventude. Por vezes, as pessoas esquecem-se que desde muito cedo marquei bem o meu nome no ciclismo, fui para fora muito cedo e consegui sempre muito bons resultados e é pena que algumas pessoas frustradas, que estão ligadas à modalidade, se esqueçam disso.”

Em relação às corridas que marcaste, na minha cabeça ficou sempre a Volta a Califórnia, pela forma como discutias a corrida, sendo uma das razões que me levam a gostar tanto das corridas americanas. Aquela corrida tem uma magia diferente?

“Sempre que ia competir aos Estados Unidos adorava! A Califórnia foi das primeiras corridas que fui, depois tive oportunidade de participar no Tour of Utah e no Colorado. Adoro correr fora da Europa, em países como os Estados Unidos e a Austrália. Para mim, a Califórnia tornou-se mágica por essas exibições que fui lá fazendo, porque vemos sempre uma bandeirinha portuguesa, que nos motiva mais e também penso que o ponto-chave foi haver uma praia, que se chamava The Portuguese Beach [A Praia Portuguesa] e aí foi o pontinho extra de motivação para fazer melhor performance!”


Ao regressar a Portugal, qual foi o teu principal objectivo durante este ano?
“O único objectivo era tentar aproximar-me aos poucos do valor que tive no passado. Muito lentamente, as coisas estão a aproximar-se. Claro que não queria ter feito 15º na Volta a Portugal, nem a equipa queria, mas íamos cientes que não era eu o líder, mas era sim a referência da equipa, pelo passado que tive no ciclismo e pelas qualidades que tenho. Quem acompanha o ciclismo sabe que o líder era o Frederico e o Alejandro Marque também podia liderar. Quem sabe, eu podia ser o joker da equipa.”

“Foi uma Volta que não correu como tínhamos pensado, porque os adversários estiveram mais fortes e também tivemos azares, que impossibilitaram o Fred e o Alex de estarem na luta. Quando há azares na corrida, não podemos controlá-los. O Fred caiu duas vezes e a última vez que caiu impossibilitou-o de poder lutar por um lugar honroso no último dia. O Alex teve o azar de ficar envolvido numa queda ao início da subida para a Torre e toda a gente sabe que, pondo o pé no chão na etapa da Torre, é a mesma coisa que praticamente um abandono. Pelo menos para quem vai para a geral, se tens o azar de avariar ali ou cair, estás arredado, porque perdes o comboio e quando reentras, mesmo que seja na última carruagem, se tens o azar de furar, por muita força mental que haja, qualquer ciclista iria deitar a toalha ao chão e pensar noutros objectivos e o objectivo passou a ser uma etapa e estivemos perto. Mas apareceram sempre ciclistas mais fortes do que nós e não pudemos fazer nada. Resta-nos felicitar, porque foram mais fortes. Para o ano há mais ciclismo e esperamos poder limpar a imagem.”

Antes de partires para o estrangeiro, foste várias vezes vencedor da juventude na Volta a Portugal. Que diferenças sentiste na corrida em termos de percurso e organização? Sentiste alguma evolução?

“Em termos de percurso, digamos que podia haver uma ou outra chegada um pouco mais cuidada relativamente à nossa integridade física. Recordo-me, por exemplo, da chegada a Leiria. Vínhamos numa aproximação muito rápida à meta, dos 5 para os 4 quilómetros, a cerca de 80 km/h, e tínhamos uma viragem à esquerda muito perigosa, depois viragem à direita e isso, nos primeiros dias em que o pelotão vem nervoso e todos pensam que podem ganhar a Volta a Portugal, é como chegar diluente ao fogo, é a catástrofe e foi, porque houve uma queda. Graças a Deus não foi nessa parte rápida, foi na parte onde menos se esperava, já nos 2 quilómetros finais, numa ligeira subida.”

“Em termos de dificuldade, o percurso foi muito bem traçado. Se formos a ver, peca no exagero do contra-relógio do último dia, pois acho que não havia necessidade de fazer tantas voltas à cidade de Gaia e do Porto. Podíamos ter feito um contra-relógio com a mesma quilometragem, em que se pudesse usar a 100%a bicicleta de contra-relógio, sem ter de estar a tirar tantas vezes as mãos do apoio e a pôr no guiador. É o pior que podem fazer a quem gosta de fazer contra-relógios, porque não vamos sempre na posição em que gostamos de desfrutar da bicicleta.”

“A nível de espectadores, estava fantástico. Não sei como foi nos anos em que não participei, mas nos anos em que eu estive, acho que foi exactamente igual. De resto, a nossa Volta continua a ser uma das grandes provas do mundo, porque tive a oportunidade de participar em quase todas elas e, do que vi, a nossa Volta não fica nada atrás. Muito pelo contrário.”


Um ciclista com o teu palmarés, carreira e história no ciclismo, o que sente ao terminar uma etapa duríssima como a da Torre e ter um adepto no público a chamar nomes?

“Essas pessoas não vêm para ver ciclismo. Vêm para provocar e aquele adepto ficou bem assente que estava ali para provocar. Chamar-me ‘filho da …’ e ‘ca…’ é o pior que me podem fazer. Se fosse outro tipo de insulto, tinha-me passado rigorosamente ao lado, mas insultar a minha mãe e a minha esposa, para mim é a gota de água. Se não fosse o pessoal da equipa, nomeadamente o massagista, o Patrício, e outras pessoas que me seguraram, teria tido uma atitude menos correcta e eu é que ia passar por ser o mau da fita. Se calhar, era o que aquele adepto merecia e ia servir de exemplo para outros tantos, que estão na beira da estrada e pensam que podem descarregar a merda de vida que têm em pessoas que estão ali a fazer o que gostam e a tentar dar um bom espectáculo àqueles que gostam da modalidade.”

Actualmente, os atletas têm uma grande exposição nas redes sociais. Tu és um desses atletas, que expõe os pontos positivos e negativos da carreira, sem medo. É benéfico ou pode também gerar comentários como os referidos na questão anterior?

“Sei que as redes sociais têm o lado ingrato, que há pessoas que falam mal nas minhas costas. Algumas, simplesmente porque fica bem falar mal em determinada situação e depois vêm tirar a ‘selfie’ comigo. Sempre escrevi nas redes sociais da forma que escrevo hoje em dia. Nunca apresentei uma desculpa para os meus insucessos, que são muitos, nem nunca embandeirei em arco quando ganhei o que quer que fosse.”

“Ainda estes dias escrevi que ‘temos de ser humildes na vitória e ter coragem na derrota’. Sempre foi este o lema que tive na minha carreira. Estas palavras são da minha psicóloga, que muito me ajudou em 2013, e são elas que levo sempre na cabeça. Se essas pessoas querem ter meia dúzia de ‘likes’ a falar mal de mim, que sejam felizes com isso, porque quem escreve bem tem muitos mais ‘likes’.”


És um atleta com o coração na boca, dizes tudo. Como é guardar o teu espírito benfiquista de leão ao peito?

“Não é difícil. Toda a gente sabe qual o Clube com que simpatizo. A partir do momento em que estou a representar um Clube com a dimensão do Sporting, acima de tudo tenho de ter respeito pela entidade patronal e dignificar ao máximo a camisola. Por essa razão, muitas vezes fico um bocado desapontado com certos adeptos, que dão a entender que ando aqui a passear. Não, sou profissional e toda a gente pode ver nas redes sociais que continuo a ter os mesmos rituais que tinha quando corri nas melhores equipas do mundo. Portanto, porem em causa o meu profissionalismo é coisa que não consigo entender.”

Manténs exactamente o mesmo plano de trabalho de quando estavas no WorldTour?

“Já trabalho com este meu preparador desde Novembro de 2013. De certa forma, foi o que esteve ligado aos melhores resultados da minha carreira. Muitas vezes é bom mudar, mas não podemos pôr em causa o trabalho daquelas pessoas que trabalham connosco, porque não é fácil ter resultados do dia para a noite. Quando comecei a trabalhar com esta pessoa, fiquei um pouco de pé atrás, porque vinha acostumado a outros métodos de trabalho e, quando comecei a ver os métodos dele, fiquei um pouco assustado.”

“Na primeira corrida, acho que foi no Challenge de Mallorca, as coisas não correram bem, mas aí foi um erro meu, porque não me alimentei na prova. Depois, vim para a Volta ao Algarve a pensar que podia discutir a prova, como sempre tinha feito e fiquei a pé na etapa da Fóia. Cheguei vazio à meta e em conversa com o meu empresário ele disse-me: ‘olha, fazemos o teste na etapa do Malhão e depois logo se vê’. Fiz quinto na etapa do Malhão, já estive mais perto do meu valor e na semana a seguir fiz segundo na Volta a Múrcia e nono na clássica que é mais a rolar, em Almería. A partir daí, fui ganhando aquela confiança e vendo que é preciso dar tempo ao tempo para que os métodos de trabalho comecem a cimentar-se.”

Como vai ser em 2020?

“Eu assinei um ano com o Tavira. Não tenho proposta de ninguém e, como digo, tenciono correr mais um ano. Foi a meta que coloquei na minha mente, tentar competir a este nível até 2020, porque ainda acredito que posso sacar o melhor de mim o ano que vem. Este foi um ano de transição e, aos poucos e poucos, as coisas têm corrido bem numas provas, noutras corre menos mal, às vezes há um dia em que estou mais inspirado e noutros nem tanto. E é como eu digo, se tiver oportunidade de correr para o ano, acredito que ainda poderei fazer alguma coisa bonita.”

Arrependeste de alguma coisa na tua carreira?

“Não, porque temos de aprender com os nossos erros. Não vou estar a arrepender-me de uma coisa que fiz, de uma decisão que tomei, porque na altura pensei que estava a fazer o correcto. Olhando para trás, acho que fiz tudo o que estava ao alcance das minhas capacidades.”

E há alguma corrida que gostarias de ter feito e não fizeste?

“Há tantas… se for a ver, os Jogos Olímpicos de 2008, 2012 e 2016. Acho que tinha lugar na Equipa Nacional, mas são escolhas.”


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