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Liliana Jesus, a enfermeira ciclista: “Desatei a chorar de angústia como se fosse para uma guerra”


Liliana Jesus é uma ciclista bem conhecida do pelotão luso. Presença assídua na Selecção Nacional, vencedora da Taça de Portugal de Estrada e da Taça de Portugal de Maratonas BTT, com medalhas conquistadas na vertente de Pista, no ano de 2020 surgiu a oportunidade de correr pela equipa galega Farto-Aguas do Paraño, com a qual disputou no início do mês de Fevereiro a Volta a la Comunitat Valenciana. Para além de ciclista, é também enfermeira no Centro Hospitalar de Setúbal.

Em exclusivo para o nosso blogue, Liliana Jesus fez o retrato sobre como está a viver a pandemia COVID-19 enquanto enfermeira, mulher e ciclista. Ao dia de hoje, 13 de Abril, Portugal tem 16934 casos confirmados, 535 óbitos e 277 casos recuperados por COVID-19, a nível mundial a cifra aproxima-se dos dois milhões de casos confirmados, os óbitos ultrapassam os 115 mil e os casos recuperados superam os 433 mil.

A ciclista Liliana Jesus (© Facebook Atleta)


A ENFERMEIRA

“Neste momento, estou muito tranquila em relação à doença e às linhas que esta apresenta. Para chegar a este patamar, tive de passar por um processo moroso e de angústia. Passo a explicar:

“Estava a trabalhar no serviço Especialidades Cirúrgicas, do Centro Hospitalar de Setúbal. Como o nome indica, é um serviço destinado a cirurgia, onde se tratam essencialmente doentes que precisam de cirurgia para prevenir situações oncológicas, prevenir progressões destas doenças e/ou reverter situações patológicas.

“Quando a situação pandémica bateu à porta de Portugal, o nosso hospital teve de sofrer alterações estruturais, para criarmos serviços destinados exclusivamente para os doentes infectados com COVID-19. Para fazer face a esses serviços, alguns enfermeiros tiveram de ser mobilizados para estes serviços exclusivos a doentes COVID. Eu fui uma das mobilizadas. Não fiquei contrariada com a mobilização, apesar de não me ter voluntariado para a mudança. Não fiquei contrariada, pois sabia que existia uma necessidade nesse sentido, porque a minha chefia sentia que tinha competências para tal (muito associado ao desporto), porque pensava em colegas, que tendo filhos pequenos, poderiam ir a um dito sorteio para nos ‘voluntariar à força’ para os serviços COVID. Não me iria sentir confortável com a situação, por isso, aceitei a proposta da minha chefia. Além de que, quando esta questão da mudança de serviço se colocou, fui a única a demonstrar interesse ao realizar questões sobre todo o serviço/doença.

“E lá vim para a Unidade COVID do Centro Hospitalar de Setúbal. Se foi fácil aceitar, não… não foi. No dia em que recebi a notícia, quando desliguei o telefone desatei a chorar de angústia, como se fosse para uma guerra! Saber que ia contactar com pessoas infectadas deixava-me com muita inquietude. Tive necessidade de me ‘despedir’ da minha família, pois sabia de antemão que não os iria ver tão cedo. É um facto, já não a vejo desde o dia 13 de Março.
 
A enfermeira Liliana Jesus (© Facebook Atleta)

“Entre o dia 13 e o dia 22 de Março, o meu humor oscilou entre a tristeza, a angústia e momentos de alívio. Até que, no dia 22, um simples abraço de uma amiga me reconfortou. Fui dar um passeio na rua com o meu marido, aliviei a mente e comecei a pensar no futuro que se avizinhava. Portanto, comecei a estudar a doença e a criar estratégias para lidar com a situação da melhor maneira possível:

“Primeiro, aceitar que iria trabalhar para a Unidade COVID. Segundo, mentalizar e aceitar que iria ter uma forte possibilidade de ficar infectada, fosse no local de trabalho, fosse na comunidade. Terceiro, perceber e aliviar mentalmente que o serviço onde iria estar tem as melhores condições em termos de segurança para o nosso trabalho. Quarto, perceber que ali, no meu local de trabalho, iria estar com o vírus e não haveria grandes oportunidades de erros. Saber que se tem é muito melhor do que saber que não se tem, o facilitar não acontece quando tempos certezas! Quinto e por último, comecei a estudar sobre a doença: o que é, a origem, características, sintomas, comportamento, as pessoas que afecta, etc. Comecei a estudar o comportamento desta doença em outros países e comecei a tomar as minhas conclusões. Em todos os países, esta tem as mesmas características.

“À medida que me ia sentindo mais confortável, no seio deste desconforto causado por toda esta pandemia, mais discernimento ia tendo sobre a situação. Sou sincera, senti que a comunicação social estava a fazer-me de parva pela forma como transmitem a notícia, perpetrando o medo e não o respeito que a doença merece. No entanto, agora penso que, às vezes, sou uma ovelha negra nesta situação toda ao sentir me tão tranquila com tudo isto.

“Comecei as minhas funções na Unidade COVID no dia 30 de Março. Sete manhãs consecutivas para perceber o funcionamento do serviço, rotinas e entender o uso e prática da utilização dos EPI. O trabalho em si não é complicado. Passa por tratar de doentes que padecem de doença respiratória. O mais chato é o vestir e despir a ferramenta de protecção que nos é fornecida. O equipamento causa calor, a nossa parte respiratória está limitada pelas máscaras, óculos, viseiras que se utilizam. Contornável e sem stress, toma-se banho logo a seguir aos cuidados para descontaminar, mas para mim é o aliviar da sensação que o equipamento causa. Suamos imenso!

“O mau, muito mau, do meu local de trabalho é o stress psicológico. Só se fala em COVID, em números brutos, no drama, na maneira como as minhas colegas lidam com a doença, na maneira como desinfectam os produtos, de como andam na rua, de como tratam os doentes (exclusão/repulsão), etc. Sou sincera, é mais fácil estar com os doentes do que com o constante stress que se vive no seio da equipa. Atenção, não censuro os meus colegas/médicos/auxiliares de acção médica. Eles não tiveram oportunidade de reflectir sobre a doença, não tiveram tempo longe da temática para poderem aperceber-se das circunstâncias. Eu tive esse tempo. Eu tive a oportunidade de pensar e reflectir e, assim, tranquilizar as minhas ideias, atitudes e cuidados.”

A MULHER

“Já deu para perceber que enfermeira não estou com qualquer medo do vírus, que causa uma doença e não uma guerra, como nos passaram inicialmente a ideia e que eu própria senti. Tenho sim muito respeito e é preciso entendê-lo e saber estar com ele. De ressalvar uma situação muito importante: tive sempre alguém ao meu lado, que me fez pensar sobre o assunto, ajudando a abrir os olhos face à pandemia, e ambos encontrámos as nossas estratégias para lidar com a doença COVID. O meu marido!

“Enquanto mulher, faço tudo normalmente. Limpo a casa, cozinho, o marido lava a louça (afirma entre risos), trato da roupa, da Nikas (a cadela) e até terminei as mudanças de garagem que andava a fazer. Quando vou às compras, tento ir nos horários destinados à minha profissão por dois motivos: evitar confusão e evitar o stress que se vive no interior das superfícies comerciais pela procura de bens essenciais. Vive-se, sente-se o desespero, o medo das pessoas.
 
A mulher Liliana Jesus (© Facebook Atleta)

“Cuidados acrescidos agora? Sim, tenho. Quando vou às compras, utilizo o desinfetante antes e após sair das superfícies para desinfetar as mãos. Lavo sempre as mãos assim que chego a casa, pois tocamos em várias coisas. O restante? Desinfetar embalagens, alimentos, sapatos, etc. ao chegar a casa? Não, não o faço. Tenho consciência que não vivemos num ambiente estéril e medidas que nos façam entrar em paranoias, eu dispenso! Atenção, esta é a minha postura, não censuro quem o faça. Mas, muito sinceramente, acho que a doença em si não justifica. Sempre lavei os alimentos antes de comer, sempre cozinhei bem os alimentos, faço tudo como se tratasse de um processo normal. Não uso máscara na rua, gosto de respirar o ar que me é facultado pela natureza, gosto de poupar os meus meios de protecção, que devo utilizar no meu local de trabalho.

“O que faço? Tento manter o distanciamento social preconizado e respeitar as regras de cada instituição e superfície a que vou. Mantenho a quarentena voluntária em casa e só saio para ir para o trabalho, para passear a Nikas (sempre o fiz), para ir ao meu local de treino, uma pequena loja que tenho perto da minha casa, criada com a finalidade de acompanhar atletas, visto que eu e o meu marido somos também treinadores. Além disso, desde que comecei a trabalhar na Unidade Covid, consinto-me o meu passeio higiénico para aliviar o stress causado pelo trabalho. Faço-o uma vez por semana e sempre na companhia do meu marido, para protecção essencialmente. Além disso, se partilho a mesma cama, porque não partilhar o mesmo trilho de btt?”

A CICLISTA

“Enquanto atleta, muitas coisas mudaram desde que esta situação começou. Deixei de treinar em grupo e deixei de treinar na rua, apesar de ter uma declaração por parte da equipa que represento (equipa espanhola Farto-Aguas do Paraño), visto ser contratada (sem remuneração). Faço-o por dois motivos: como esta situação do contrato é ambígua, opto por respeitar o que é pedido e estar em casa/loja) a treinar; evito riscos desnecessários ao andar na rua, pois tenho algum receio que me façam mal, tenho receio de me magoar e na hora da verdade sou enfermeira e sou precisa nos cuidados, não sou precisa para ser cuidada. É o meu dever civil.

“Como já referi, só saio à rua para o meu passeio higiénico, uma vez a semana, para me libertar do stress e quando o meu horário e o do meu marido coincidem. Além dos treinos de bicicleta, faço reforço muscular. Gosto de manter este tipo de exercícios para ir variando e, acima de tudo, manter uma boa forma física do trem superior do corpo. Uma das coisas que faço, e já fazia, é pilates. Este é um momento que me permite também relaxar e manter algum contacto com a minha fisioterapeuta. É manter algum contacto com a normalidade, se assim posso dizer.

“Enquanto atleta, deixei de treinar por objectivos. Não estou numa altura de fazer o esforço mental de pensar em objectivos. Quando as coisas normalizarem, logo se ajustarão se forem a tempo de ser ajustados. Treino, porque me faz bem, porque me distrai do tema COVID, porque naquele momento o tempo é só meu. Treino para não perder tanto a forma física e todo o esforço que fiz até aqui, pois sendo este o ano que tinha delineado como sendo o meu último ano competitivo, tinha conseguido junto à minha entidade patronal algo que já procurava há muito tempo: redução de horário. Isto permitiria treinar mais e melhor, competir a um nível mais elevado, pois sabemos que em Portugal o nível está em crescimento, mas ainda é inferior ao que se vive lá fora. Permitir-me-ia poder avançar para um sonho, que desde 2016 tinha surgido: correr além-fronteiras! Agora suspendo objectivos, sonhos e necessidades. Logo veremos.
 
A ciclista Liliana com a equipa Farto-Aguas do Paraño (© Facebook Atleta)

“A minha vida sempre foi muito agitada. Trabalho, treino de bicicleta e reforço, treinar miúdos e graúdos, a lide, competir, etc. Era uma constante correria, parecia que tinha de esticar o tempo. Mal tinha tempo, queixava-me imenso deste facto, sou sincera. Agora tudo parou e valorizamos tanto outras coisas.

“Este tem sido um grande momento de reflexão para mim. Sempre vivi a vida e considero que sou feliz, mas sempre quis viver tudo a correr. Agora vivo o dia-a-dia, sem pressa dele passar, sem ansiar nada. Talvez se deva ao facto da minha vida estar numa grande incerteza, pois não sei quando haverá de facto um fim à vista disto tudo, não sei quanto tempo me manterei no serviço em que estou a trabalhar, não sei como será a minha vida desportiva, principalmente quando tinha definido este como o último ano competitivo para poder vir a ser mãe em 2021 e avançar com outros projectos de vida.

“Acredito que a COVID-19 nunca acabe, teremos sim de viver com ela como vivemos, por exemplo, com a Gripe A.

“Enquanto atleta/enfermeira/mulher nas redes sociais, tento não fazer publicações dramáticas. Tento fazer uma exposição mais ligeira da situação, para tentar trazer alguma paz às pessoas. Não é fácil, pois as pessoas estão dominadas pelo medo e em vez de verem o meu positivismo, só vêem a minha farda altamente armadilhada. Vamos ver o que consigo fazer de agora em diante.”

Liliana Jesus (© Facebook Atleta)

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